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segunda-feira, 30 de agosto de 2010
Luiz Eduardo: polícia precisa de reforma profunda
O ex-coordenador de segurança do governo Garotinho, Luiz Eduardo Soares - que foi demitido em entrevista ao vivo do ex-governador Garotinho - questiona a eficácia da política de pacificação de favelas a médio e longo prazos sem uma reforma profunda na polícia, tese que também tenho defendido neste blog.
Soares - que atualmente é secretário municipal de Asssitência Social e Prevenção da Violência, em Nova Iguaçu, deu entrevista a Renato Lemos e Lucila Soares, da "Veja". Leia a íntegra:
"O ex-secretário de Nacional de Segurança Pública Luiz Eduardo Soares estava em seu apartamento em São Conrado no último sábado, quando eclodiu o confronto entre policiais e traficantes que resultou em intenso tiroteio pelas ruas do bairro, invasão do hotel InterContinental e 35 pessoas feitas reféns. Não foi a primeira vez em que se viu nessa situação, tanto como morador quanto como profissional da área de segurança. Ele mora exatamente no condomínio que foi invadido por traficantes em fuga, atirando a esmo com fuzis. Sua esposa é professora e tinha saído às 8:00 para dar aulas na UFRJ. “Os tiros estremecem as paredes e ecoam por dentro do corpo da gente, como se fôssemos seres líquidos e nos expusessem à corrente elétrica”, descreve. “Os estampidos nos remetem aos riscos dos que estão na portaria ou no pátio, ou passando nas ruas. Cada explosão pode corresponder a uma vida e isso é terrível.”
Nesta entrevista, Soares parte do caso de São Conrado para analisar a situação da segurança pública no Rio de Janeiro, onde foi subscretário e coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania no governo de Anthony Garotinho. Analisa as Unidades de Polícia Pacificadora, com seus acertos e limitações, faz um balanço do que conseguiu – e não conseguiu – no Rio. E conclui que, para avançar, teria sido necessário declarar guerra ao crime na polícia, algo que só piorou nos últimos dez anos. “A banda podre das polícias hoje está mais para orquestra do que para uma simples banda”, diz. “De que adianta combater um ou outro tipo de crime, como o tráfico de drogas, se a realidade é que as polícias fluminenses se converteram em incubadoras do crime organizado?”
Quais foram os erros cometidos pelos PMs envolvidos no confronto do último sábado em São Conrado?
Se o confronto deu-se por acaso, porque a viatura policial se deparou com um “bonde” do tráfico, a ação policial pode ter visado somente a legítima defesa de suas vidas –o que é natural, correto e necessário. Não haveria muitas alternativas. Se, entretanto, houve, como dizem, planejamento, terá sido uma loucura completa. Uma estupidez. Como armar uma emboscada naquele horário, numa rua movimentada, cheia de crianças e inocentes, transeuntes e automóveis? A mesma perplexidade se aplicaria a uma ação desastrada em uma favela, como eu sempre sustento. Não falo como residente de um bairro nobre. Falo como cidadão e como técnico. Uma pergunta, entretanto, não quer e não pode calar: se os moradores do bairro sabem que o “bonde” passa todo sábado ao amanhecer, vindo de festas no Vidigal a caminho da Rocinha, por que a “inteligência policial” nunca preparou uma ação eficiente e segura?
Em relação à realidade que encontrou no governo Garotinho, como avalia a segurança do Rio hoje? E a qualidade das polícias, inclusive no que se refere à corrupção?
O diagnóstico que fizemos continua válido, assim como a agenda que propusemos à sociedade e começamos a implementar. Contudo, praticamente todos os problemas se agravaram. O ponto fundamental ainda é o mesmo: nosso problema são as polícias. Antes de modificá-las, valorizando nossos bons profissionais com salários decentes e formação adequada, e transformando as condições de governabilidade das polícias (posto que ainda são ingovernáveis), não há como avançar. Como dar escala às UPPs sem mudar as polícias, fontes do pior mal, da pior ameaça à segurança, que são as milícias (que já suplantaram o tráfico e relevância, força, lucros, poder político e presença física no estado)? De que adianta combater um ou outro tipo de crime, como o tráfico de drogas, se a realidade é que as polícias fluminenses se converteram em incubadoras do crime organizado e sob a mais grave das formas? Repito o que defendia e o que tentei fazer, em 1999, até ser exonerado, em março de 2000: é preciso declarar guerra ao crime na polícia, isto é, ao que eu chemava, à época, banda podre das polícias, que hoje está mais para orquestra do que para uma simples banda. E digo isso com tristeza e respeito às instituições. E mais: digo por respeitá-las e valorizar os excelentes profissionais que lá estão, honrados, honestos, competentes, arriscando a vida por salários indignos, ultrajantes.
Qual sua avaliação sobre as Unidades de Polícia Pacificadora?
No Rio de Janeiro, tive o privilégio de criar com minha equipe e implantar os “Mutirões pela Paz”, a substituição das incursões bélicas às favelas por uma presença policial constante, eficiente, respeitosa, legalista, de orientação comunitária, interativa, voltada para a resolução de problemas com abordagem preventiva. Ao lado do policiamento comunitário, as favelas começaram a receber ações do Estado, na área social, de educação, saúde, urbanização, etc. O projeto pacificou seis comunidades em 1999, com extraordinário sucesso na redução da violência criminal e a consequente melhora nas condições de vida locais e da valorização dos imóveis em áreas contíguas. Se o leitor está pensando nas atuais UPPs, acertou. O plano era exatamente o mesmo. A diferença é que agora o governador se envolveu e mobilizou todo o governo a apoiar e engajar-se numa política integrada. Nós começamos muito bem, mas faltou esse apoio político, apesar da aprovação da mídia e da opinião pública. Quando fui exonerado, o programa foi abandonado, sob o pretexto de ser valorizado com outro nome e outra amplitude. Não aconteceu. Contudo, o desastre da volta das incursões bélicas com a suspensão do programa foi tamanho, que o governador determinou que um excelente policial militar retomasse a experiência, em escala diminuta. Implantou-se, então, o GPAE, no Pavão-Pavãozinho e no Cantagalo, com grande sucesso. Mas, de novo, a política dissolveu o sucesso, reconhecido por todos –fizeram-se documentários a respeito, um deles na BBC. Essa é a gênese das UPPs. Agora, além do apoio do governador, as UPPs contam com a presença de Ricardo Henriques, um dos melhores gestores públicos do país, cercado de uma excelente equipe na secretaria de assistência social e direitos humanos do estado do Rio. Aplicando políticas sociais consistentes, o governo tornará as UPPs um programa mais que simplesmente policial, ainda que esta dimensão seja fundamental. É o que tentei fazer, é o que o Mutirão pretendeu ser, mas não teve pernas nem apoio político dentro do governo para sustentar-se e desenvolver-se.
Quais são os limites das UPPs?
Os problemas ou limites são a falta de escala e de sustentabilidade. Como manter e ampliar o programa, sem que se faça algo profundo, radical, para mudar as polícias? Ilhas de excelência são ótimas para demonstrar a viabilidade desse caminho e conquistar apoios indispensáveis para avançar, mas não substituem uma política de segurança. Por exemplo: onde está o combate às armas ilegais? Como elas transitam pelo estado? Como chegam e saem dos morros? Como lá transitam?
Em relação ao que encontrou no início do governo Lula, como avalia a política nacional de segurança?
Nesses oito anos, houve algum avanço em questões centrais, como a articulação com os estados, a formação dos policiais, a integração da ação das polícias e outras que o senhor considera importantes?
Os pontos chave da agenda - que constam do primeiro plano nacional para o primeiro mandato do presidente Lula—não foram tocados, desde que saí do governo. Eles se referem à criação de condições políticas, via celebração do que eu chamava “pacto pela paz”, com todos os governadores, para o envio ao Congresso de uma PEC consensual, visando a mudança do artigo 144 da Constituição e, assim, a mudança de nosso modelo policial (que constitui nossa jabuticaba institucional: só o Brasil divide ao meio o ciclo do trabalho policial entre polícias civis e militares, e divide ao meio cada uma delas, separando as carreiras dos oficiais e dos não-oficiais, dos delegados e dos não-delegados). À União, o artigo 144 confere obrigações muito inferiores ao que seria necessário. Os municípios, tão fundamentais no processo da segurança pública, são negligenciados. Junto da mudança do modelo policial, como regulamentação infra-constitucional, institucionalizaríamos o SUSP, para, sem ferir as autonomias dos entes federados, harmonizar e garantir condições nacionais de qualidade. O endosso dos governadores foi obtido. Mas sobrevieram obstáculos políticos e o país perdeu uma oportunidade para afirmar um consenso mínimo.
Mas houve avanços, sim: na formação policial, com um notável programa liderado pelo excelente secretário atual, Ricardo Balestreri, o qual já alcançou mais de 300 mil policiais em todo o país. No campo da prevenção, o ministro Tarso Genro fez bastante, por meio do Pronasci (programa nacional de segurança com cidadania).
Que balanço o senhor faz do período em que teve oportunidade de formular a política de segurança no Rio de Janeiro? Que avanços registrou, e que obstáculos enfrentou?
No Rio, além dos Mutirões pela Paz, destacaria:
1) A Delegacia Legal, com o fim das carceragens nas delegacias, a informatização, integração em rede e geração dos instrumentos indispensáveis ao diagnóstico, planejamento e avaliação das ações. Saíamos de um modelo degradado, em que havia um arquipélago de unidades locais, para a formação de estruturas institucionais.
2) A campanha pelo desarmamento, para que o foco da segurança passasse a ser a arma ilegal e o tráfico de armas, com o objetivo de impedir o controle territorial por parte de criminosos e conter a propagação dos crimes letais. Fui ao presidente Fernando Henrique, pedir que o Exército assumisse sua missão constitucional de controlar o fluxo interno das armas e organizar sua base de dados de forma rigorosa e eficiente. Está aí a origem da legislação restritiva das armas que se constituiu no principal fator responsável pelo declínio dos homicídios no Brasil, nos últimos anos (declínio insuficiente, mas bastante significativo)
3) Quatro linhas novas de política de segurança, em quatro Centros de Referência: contra a violência doméstica que vitima mulheres e crianças; contra a homofobia; contra o racismo e contra os crimes ambientais. Cada Centro de Referência fazia diagnósticos com as polícias e acompanhava a execução das ações planejadas, além de organizar e oferecer cursos de formação especializada aos policiais.
4) Ouvidoria das Polícias, conduzida por Julita Lengruber.
5) Expusemos o jogo perverso da segurança privada ilegal e informal, antecipando consequências que hoje estão aí, aos olhos de todos, com o fenômenos selvagem das milícias. Propusemos uma abordagem radical para enfrentar esse desafio, que partisse de um debate do governo com a sociedade sobre o orçamento público da segurança e negociamos com empresários formas inovadoras de parceria, que se mostraram promissoras e conquistaram forte adesão.
E também a criação do Instituto de Segurança Pública, parcerias com universidades, contribuição para a consolidação do programa de proteção à testemunha, início da reforma da perícia. Principalmente, acredito que mostramos ser possível e necessário combinar eficiência policial e respeito aos direitos humanos. Mas, para avançar, teria sido necessário abrir guerra total contra o que eu denominei “banda podre das polícias”, sem mais conciliações e cálculos eleitoreiros. Isso exigiria coragem política e pessoal e muita transparência com a mídia e a sociedade. No entanto, isso era e continua sendo muito para os políticos, constrangidos pelos cálculos impostos pelo ciclo eleitoral bienal, refratário a políticas que requeiram tempos longos de maturação.
E no âmbito nacional?
Na secretaria nacional minha missão era começar a implantar o plano nacional de segurança com o qual Lula havia sido eleito para o primeiro mandato (plano do qual eu havia sido um dos coordenadores e para cuja redação reunimos vários dos mais experientes policiais e pesquisadores). Os primeiros dois passos previstos eram: negociar com os governadores a adesão ao SUSP (Sistema Único de Segurança Pública) e à reforma do modelo policial, o que exigiria propor uma PEC ao Congresso Nacional. Os governadores aderiram, mas, infelizmente, mais uma vez, os cálculos políticos se interpuseram e impediram a celebração desse sonhado pacto pela paz, base das mudanças ansiadas e sempre adiadas."
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