Sob o título “Relatório da ONU foi induzido por setores da defesa”, o artigo a seguir é de autoria de André Luis Melo, promotor de Justiça em Minas Gerais, professor universitário e mestre em Direito. Foi publicado anteriormente no site “Consultor Jurídico“.
A Organização das Nações Unidas emitiu relatório sobre a situação prisional no país e parece desconhecer o problema ou que foi induzida por setores corporativos.
Em síntese alega que temos um bom sistema de medida alternativa, há lentidão processual, temos boas penas alternativas, temos falta de defensores públicos, temos presos em excesso, mas confunde causas com consequências.
Na verdade, a ONU parece que não ouviu a área policial, nem o Ministério Público, partiu da visão única da defesa. Inclusive no Ministério da Justiça praticamente não há promotores, apesar do número enorme de defensores e advogados.
Portanto, passa-se a demonstrar o equívoco de cada conclusão do relatório da ONU:
1) A ONU ao afirmar que o processo penal é lento não informa que a reforma processual penal foi tímida em razão de forte lobby da própria defesa (através de um instituto de direito processual ligado a uma universidade tradicionalíssima), inclusive aprovaram que o interrogatório seja o último ato em todos os processos, o que aumentou o tempo do processo e da prisão e não satisfeitos criaram uma “defesa preliminar” de pouco resultado prático, mas que também aumenta o tempo do processo. O interrogatório ao final provocou o colapso nas pautas de audiência, pois é necessário fazer toda a instrução (mesmo que preso em flagrante, filmado e deseja confessar). E o relatório da ONU nada fala sobre isto.
2) Alega ainda que temos boas penas alternativas, não se aplica. Isto é desconhecer a realidade da falta de Centrais de Penas Alternativas (Ceapas), logo não há como executar ou fiscalizar as penas alternativas. Ademais, se no delito cabe pena alternativa, por qual motivo não permitir ao Ministério Público já propor a mesma? E evitar o trâmite processual, mas isto não interessa à defesa criminal, pois quanto mais processos, mais se pede recursos humanos e financeiros. E o relatório da ONU nada fala sobre isto.
3) Registra ainda a não aplicação pelos juízes das medidas alternativas à prisão aplicadas. No entanto, isto decorre da falta de meios para fiscalizar, nem temos as tornozeleiras eletrônicas em número suficiente. Além disso, não faz sentido que o delegado de Polícia possa colocar em liberdade mediante fiança e o Ministério Público não possa colocar em liberdade. Ora, em muitas situações quando o Ministério Público verificar que não é crime, que está prescrito ou que cabe pena alternativa deveria poder colocar em liberdade, mas não pode. E o relatório da ONU nada fala sobre isto.
4) Alega também que há casos de defensores públicos atuando em 800 processos criminais, mas nada fala sobre o fato de termos Promotores atuando em mais de 3 mil processos criminais e com a obrigação de provar e “correr” contra a prescrição. Outro aspecto, é que há um número razoável de defensores públicos fora da atividade fim da defensoria e cedidos para órgãos como o Ministério da Justiça, assessoria de políticos e outros órgãos públicos, o que precisa ser avaliado e talvez até proibido. Por outro lado, também não analisa o relatório o fato de que se tem impedido que outros setores atendam nos presídios, inclusive ajuizando ações, como no caso de Minas Gerais (impedindo que os analistas jurídicos do presídio atendam os presos, pois defensores alegam “exclusividade”).
5) Consta também que há excesso de presos, mas este é o erro mais crasso do relatório ao propor a solução, a qual consiste em contratar mais defensores públicos. Afinal, é preciso destacar que em 2002 eram 300 mil presos no Brasil e em 2012 passou para 500 mil presos, sendo que o período coincide com a assunção do PT ao Governo Federal e com a visão de estatização da assistência jurídica com monopólio. Esta situação precisa ser estudada com muita cautela, pois a estatização pode não ser a causa, mas a coincidência é enorme. A figura do “Estado acusando” e “Estado defendendo” deve ser a exceção e não a regra. Afinal é paradoxal o Estado ser obrigado a acusar para depois ser obrigado a defender. Tem se observado a defensoria pedindo mandados de busca domiciliar, mandados de prisão, investigando, requisitando inquéritos policiais, acusando, fazendo diligências com a PM para prender “supostos infratores dos direitos das crianças” e outras atividades que são de responsabilização e não de assistência jurídica. E o relatório da ONU nada fala sobre isto.
6) Não faz sentido que o relatório da ONU nada diga sobre o “mito da obrigatoriedade da ação penal”, o qual já deixou de existir nos países democráticos, porém no Brasil vigora sem previsão na lei. De fato, setores da defesa querem que o Ministério Público seja obrigado a processar criminalmente, pois isto assegura o mercado da defesa, a qual assim pode alegar que tem muito serviço e precisa de mais recursos. Então em vez de se ter mais gastos com a defesa, o que acaba agilizando a condenação, pois na prática observa-se poucas absolvições, melhor seria permitir ao Ministério Público arquivar os casos menos graves por falta de justa causa (princípio da oportunidade da ação penal).
7) Estranhamente nada fala o relatório sobre a ausência do Atestado de Pena na internet, o que dá autonomia ao preso, mas setores da defesa não querem isto, uma vez que perderiam o controle sobre o preso e reserva de mercado.
8) Também nada fala o relatório da ONU sobre o fato de juiz brasileiro poder prender de ofício, sem pedido das partes e até mesmo contrário ao pleito do Ministério Público.
O relatório da ONU é um documento da visão da defesa criminal, o qual não propõe mudanças, mas apenas “mais do mesmo”, ou seja, mais dinheiro para a defesa, porém mantendo a obrigatoriedade da ação penal. Atualmente o problema são os flagrantes da PM por delitos mais simples que respondem por mais de 90% dos processos com preso e nada se fala nisto, logo a polícia tem poder de escolha.
Mas a solução apontada pela ONU é o sonho da defesa, o qual consiste em gastar mais com assistência jurídica em vez de reduzir as prisões em flagrante permitindo ao Ministério Público, como titular da ação penal, colocar em liberdade e até mesmo fundamentadamente arquivar por falta de justa causa para a ação penal.
A solução não é “defender mais”, e sim, prender e processar menos, mas isto a defesa não tem interesse, pois reduz mercado de trabalho.
Para processar menos é preciso romper com o mito da obrigatoriedade da ação penal. Para prender menos é preciso que o MP possa colocar em liberdade notadamente nos flagrantes da PM, pois muitos são abusivos e não se pode aguardar a manifestação judicial, pois demora dias e até meses. Se é para diminuir número de presos basta que o MP também possa relaxar flagrante ilegal, pois não é atividade privativa do juiz (soltar).
Se a ONU realmente quiser fazer um relatório independente e imparcial tem que ouvir os órgãos policiais e o Ministério Público e não apenas os órgãos do Executivo Federal, pois têm uma ideologia que não reflete a necessidade real. Assim, sugere-se que a ONU analisar as seguintes soluções:
1) Implantação de Centrais de Pena Alternativa, as quais praticamente inexistem no Brasil.
2) Romper com o mito da obrigatoriedade da ação penal no Brasil, o que já aconteceu em todos os países democráticos da Europa.
3) Permitir ao promotor oferecer proposta de pena alternativa quando não for caso de prisão, pois há caso de que fica preso provisoriamente para ao final aplicar pena alternativa. O objetivo desta burocracia processual em vigor parece ser mais assegurar o mercado de trabalho da defesa do que a liberdade. No entanto, com a mudança o promotor já poderia oferecer o acordo no início e evitaria a prisão, mas isto não interessa muito à defesa, pois perde mercado de trabalho e recursos do governo.
4) Possibilitar ao promotor colocar o autor em liberdade quando verificar que o fato está prescrito, não é crime, ou que cabe pena alternativa.
5) Liberar o Atestado de Pena pela internet, ainda que mediante senha.
Com estas medidas e sem gastar praticamente nada, haveria uma redução de mais de 50% no número de presos, mas isto não interessa a setores da defesa, pois não poderiam alegar excesso de serviço e que precisam de mais recursos financeiros e de pessoal. Em suma, o foco da ONU está errado, pois tem sido induzida pelos setores da defesa criminal a manter o mesmo modelo complexo e lento para justificar reserva de mercado de trabalho.
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